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“É como se a gente estivesse cego no mundo”

Vem do Pantanal a história do projeto que ensina  pescadores ribeirinhos a ler e a escrever

Parte dos alunos, com a professora Janete e equipe do Ipedi: mobilização vai levar o projeto também para distrito longe da área urbana  cidade.

Com a frase de Paulo Freire, a professora Janete busca inspiração para o desafio de ensinar a ler e a escrever pescadores ribeirinhos.

“Os ribeirinhos são muito carentes na área da educação”, diz a professor Janete (à esquerda).

A sede da Colônia de Pescadores serve como espaço de  sala de aula, um lugar familiar que facilita o processo de aprendizagem.

Ao centro, dona Nilza, que celebra: “estou muito emocionada, porque eu precisava muito, porque a gente quer aprender a fazer uma continha, escrever o nome e... a gente não consegue, então com esse projeto vai ser muito importante na minha vida”. 
A dona Nilza Bandeira é pescadora de família conhecida em toda região de Miranda, município do Pantanal de Mato Grosso do Sul. Tradicionais pescadores do Rio Miranda, a família da dona Nilza conhece as manhas dos rios do Pantanal. E vai tocando a vida ali conforme as cheias e as “baixas” das águas dos rios da bacia do Paraguai. E nessas idas e vindas do rio e da vida, a dona Nilza teve que deixar muita coisa para depois. Ir à escola foi uma delas. A dona Nilza não sabe ler. E não saber ler é muito difícil nos dias de hoje. Você consegue imaginar como é? A dona Nilza tenta explicar: “É como se a gente estivesse cego no mundo”, descreve.
Conversamos com a dona Nilza numa sala da sede da Colônia de Pescadores Z-5, na fria noite da sexta-feira, 02 de junho. Enquanto a ouço contar sua história, no espaço ao lado estão seus amigos, familiares, conhecidos. Todos pescadores artesanais que tiram dos rios do Pantanal o sustento de suas famílias ribeirinhas. Em comum, eles têm a mesma “cegueira” da dona Nilza. São analfabetos. Uns escrevem, conhecem o “a, e, i, o u”. Outros, nem isso.
A dona Nilza está feliz porque esta história de “cegueira” está mudando. Dona Nilza e seus colegas pescadores estão entrando num barco novo, diferente dos que  em que estão acostumados. Estamos reunidos nesta sexta à noite para o Barco de Letras, um projeto que pretende ensinar os pescadores artesanais mirandenses a ler e a escrever.
A iniciativa nasceu da demanda apresentada pelos próprios pescadores que enfrentam problemas no dia-a-dia por não saberem ler nem escrever. Na Colônia, local mantido pela associação destes profissionais, eles se se encontram e, entre as atividades diárias, entre uma venda de pescado e outra, trocam lamentos das agruras de não dominarem o alfabeto: é difícil para negociar o pescado; dificuldade para preencher documentos da rotina da pesca; é difícil, até, para saber usar o celular e tirar aquela foto, daquele peixão que o pessoal só vai acreditar que não é “história de pescador” se tiver fotografado! “A gente quer ler uma receita de remédio, você não pode, você quer fazer uma continha de um peixe, você não pode, você quer ler alguma coisa, uma placa, um nome de uma rua que está escrito, você não lê. A gente vê um celular legal que a gente quer tirar uma foto, fazer um vídeo... não sabe...” enumera a dona Nilza.
Por isso, para eles, o projeto é tão importante. A ação é coordenada pela Janete Correa, ribeirinha que, diferente da maioria, conseguiu se formar nos bancos acadêmicos. É historiadora e voluntária para alfabetizar as pessoas de sua comunidade. “Os ribeirinhos são muito carentes na área da educação”, afirma Janete. Por isso o apoio que o Barco de Letras recebe é tão celebrado. O projeto é realizado com mentoria do Instituto de Pesquisa da Diversidade Intercultural (Ipedi) e tem patrocínio da organização Brazil Foundation que viabilizou o apoio financeiro que vem  do exterior, de jovens moradores do bairro nova iorquino de Bonxville. “Um pessoal de tão longe estar se importando ‘com nós’ que somos apenas ‘uns pescador’ ribeirinho fico muito agradecida”, diz a dona Nilza.
O projeto começou com 25 pescadores que frequentam as aulas no espaço da Colônia de Pescadores, todos os dias, no fim da tarde. O exercício da profissão deles obriga o projeto a se adaptar. Muitos dos alunos saem para o rio e ficam Pantanal adentro por semanas, morando nas chalanas. Levam, consigo, tarefas preparadas pela professora Janete. “Eles levaram as atividades e fizeram o compromisso de fazer”, relata Janete, com a confiança de que só dispõe quem realmente conhece a realidade peculiar destes alunos. Este é apenas um dos desafios do projeto.

Outro desafio se refere à demanda que, com o desenrolar das atividades, está crescendo. Mais pescadores, confiantes no projeto, têm demonstrado o desejo de aprender a ler e a escrever. É o caso, por exemplo, de um grupo de pescadores residentes em Salobra, distrito que fica a cerca de 20 quilômetros da cidade. Eles querem fazer parte do Barco de Letras. Janete e a organização do projeto deram um jeito. Vão ampliar as ações e levar aulas para Salobra, aos sábados. A Colônia de Pescadores como personalidade jurídica, se tornou parceira da iniciativa e vai garantir o transporte para a Janete ir até Salobra nos fins de semana. Outros parceiros estão surgindo no caminho, doando, entre outras coisas, mesas e material escolar. O sonho dos pescadores está mobilizando a comunidade. Ler e escrever está sendo, para eles, o começo de uma nova história. 

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