Case Barco de Letras: alfabetização de pescadores ribeirinhos do Pantanal

Construímos um relação de confiança mutua com a comunidade, o que ajuda a garantir o pleno desenvolvimento das atividades e a ampliação do potencial de impacto social do projeto. Foto: Luciano Justiniano
No artigo anterior (tá aqui: https://www.linkedin.com/pulse/empatia-trabalho-em-organiza%25C3%25A7%25C3%25B5es-do-terceiro-setor-benites-carneiro) descrevemos os parâmetros que nos ajudam a pensar nossos projetos, nossas ações.
Aqui, quero compartilhar a aplicação prática destes parâmetros em um dos nossos projetos mais significativos: O Barco de Letras, que promove a alfabetização de pescadores ribeirinhos.
Em nossas pesquisas e vivências sabíamos que os números de adultos analfabetos em Miranda, MS, onde o Ipedi atua, é elevado em comparação com a média nacional. Em Miranda, 13,24% da população acima de 15 nos nunca frequentou a escola, enquanto a média no Brasil é de 9,37%. Ok, é um dado cientifico, que revela uma situação preocupante que, no Ipedi, detectamos que deveria ter nossa atenção, dadas as especificidades da conformação populacional local: uma cidade feita, em linhas gerais, de indígenas, pescadores ribeirinhos, homens do campo. Decidimos atuar junto aos pescadores, dando continuidade a um trabalho que já havíamos realizado no passado. Certo, mas aquilo era mesmo o que os pescadores queriam: serem alfabetizados?
Decidimos, então, nos despirmos de conceitos pré-determinados para verificarmos se havia uma sintonia entre o que nós pensávamos e o que eles, os pescadores, pensavam, os objetivos que eles tinham.
De modo prático passamos a conversar, conviver, avaliar com eles, estando junto, vendo o dia-a-dia e neste processo a Janete Correa, coordenadora do Barco de Letras, foi fundamental. Por trabalhar diretamente com os pescadores ela pôde verificar de perto os anseios, os pensamentos, as dores deles.
Antes de fazermos este exercício de empatia, a concepção do Barco de Letras era: formar a parceria com uma escola local para conseguirmos uma sala de aula em que os pescadores pudessem ter as aulas à noite, regularmente, a partir das 19h, assim como ocorre com os demais alunos. Usaríamos as cartilhas das crianças da alfabetização.
Estávamos errados. Ao nos colocarmos junto dos pescadores, identificamos dores determinantes:
- Eles sentiam vergonha de, tão adultos, tão idosos, frequentarem à escola, para aprenderem a ler. Neste sentido uma sala de aula em qualquer escola se tornava um espaço inóspito e, sob nosso diagnóstico, seria um motivo para iniciar um processo de evasão de alunos;
- outra dor dizia a respeito da dificuldade de cumprir horários predeterminados e rígidos, com periodicidade fechada, como num curso regular: a maioria destes pescadores passa dias a fio Pantanal adentro em busca do pescado que garante a sobrevivência de suas famílias. Portanto, a regularidade às aulas que nós queríamos impor seria uma problemática: com muitas faltas sendo registradas, eles seriam desestimulados e perderiam conteúdos e este seria outro passo para evasão;
- a dor do material didático é outra que identificamos no processo de exercitar a empatia: os alunos sentiam-se infantilizados aprendendo a ler e a escrever em cartilhas com conteúdo para crianças – os adultos são pessoas com conhecimento de mundo e isso precisava ser levado em conta para potencializar os resultados do processo de alfabetização.
Só conhecemos estes anseios exercitando a empatia, recebendo a simpatia de volta dos pescadores e gerando uma relação de confiança mútua. Foi a partir daí que acertamos os ponteiros para entrarmos em sintonia: colocar nosso objetivo de oferecer alfabetização, sintonizado com a forma com que eles estavam dispostos a serem alfabetizados.
Desse modo tomamos as seguintes decisões:
- as aulas seriam concentradas em um local que fosse familiar aos pescadores, um local no qual eles se sentissem bem, acolhidos;
- a periodicidade das aulas iria respeitar os períodos de pesca em que eles estão nos rios para onde eles levariam, inclusive, a tarefa que a professora deu. Assim, respeitamos o tempo deles com a garantia de que eles se comprometeriam em fazer os exercícios e os trazerem para a professora corrigir. Foi preciso ter uma relação de confiança para optarmos por este caminho – uma relação confiança construída pelo exercício da empatia;
- o material didático precisava ser adaptado. Decidimos nos organizar para construirmos um material didático específico, contextualizado na realidade dos pescadores. É aqui que entra o Prêmio Acolher, do Movimento Natura. Em nossas vidas.
Mas antes de falarmos do Acolher, precisamos destacar que, ao tomarmos essas medidas, nos sentimos irmanados num sentimento de união, em que, juntos, passamos a fazer força para que aquela ideia do Barco de Letras desse certo. Era, enfim, uma sinergia entre o Ipedi e os pescadores.
Uma sinergia que demonstrou eficiência: primeiro o Barco de Letras foi selecionado para receber recursos da Brazil Foundation; depois, o número de alunos aumentou e tivemos que abrir uma turma no distrito de Salobra; em seguida o projeto recebeu o Prêmio Acolher do Movimento Natura, ao mesmo tempo em que ele participou da campanha de financiamento coletivo Abrace o Brasil, angariando doações nacionais e internacionais.
Hoje, o Barco de Letras forçou o poder público a levar uma turma de Educação de Jovens e Adultos para a área rural, na qual os alunos poderão ser certificados em suas respectivas séries.
Construímos, com os recursos do Prêmio Acolher da Natura uma cartilha contextualizada para a realidade dos pescadores ribeirinhos, numa metodologia que pode ser reaplicada em outros contextos sociais complexos.
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